Quatro Livros de Receitas, Um Convite Misterioso e Várias Coincidências

4 Livros de Receitas 1 Convite Misterioso e Várias Coincidências

 

Nos Tempos de Vovó

Por Julio Malzoni em 13 de janeiro de 2024

 

Certo dia estava eu pensando sobre o que poderia escrever para este blog e, ao mesmo tempo, tentando sair da mesmice de assuntos ligados ao mundo da culinária. Falar sobre receitas de chefs de cozinha renomados? Melhor não... daria muito trabalho entender, preparar, além de exigir técnica e paciência para chegar no mesmo nível deles. Algo sobre sabores ao redor do mundo? Até poderia, pois já tive oportunidade de experimentar muita coisa diferente ao redor dos quatro cantos do mundo devido à minha profissão.

 

Prato Chique

 

Mas então me veio à mente, em meio a tantos outros assuntos rodeando os neurônios durante o dia, uma vontade incontrolável de voltar aos 'tempos de vovó' e publicar algumas receitas caseiras, daquelas bem tradicionais com um toque especial no tempero, no aroma e no sabor. Aquelas receitas antigas que nos fazem voltar a querer ser criança novamente - nem que seja somente por alguns instantes - só para ter o prazer de lamber a colher com um restinho de cobertura de chocolate para o bolo, ou perguntar quinhentas vezes para mamãe se já podia comer a cocada de corte que demorava uma eternidade para esfriar (se bem que tenho a sensação que ela ainda está esfriando até hoje...).

 

Cocada de Corte

 

É isso! - pensei eu - mas como vou fazer? Não tenho nada dessa era tão longínqua disponível em mãos, nem um mísero papelzinho sequer com uma receitinha da clássica cocada, feita com três ingredientes, anotada em algum lugar. Perguntar para 'mamis' não seria problema, mas decidi não torrar a paciência da minha velhinha (e ela iria se lembrar das 'trocentas' vezes que eu esgotei a paciência dela com a tal cocada). Lembrar como se fazia algo na cozinha de casa durante a infância? É ruim hein... isso estaria totalmente fora de cogitação devido ao óbvio: meu objetivo na época era só me refestelar com as gostosuras que saiam daquele local. Eu fazia questão de deixar a preparação de qualquer receita a cargo de quem sabia fazer: meus pais.

E do mais puro nada, como um 'big bang' dentro da minha cabeça, meu cérebro gritou em voz alta: 'Vá ao sebo de livros, seu bocó!'. Nem pestanejei. Pulei da cadeira e lá fui eu.


Tudo Certinho no Lugar Errado

Ufa! Deu tempo de chegar no sebo antes de fechar. Teria mais de uma hora para caçar algo. Como eu já sabia onde ficava o 'setor de culinária', fui direto em direção à salinha e após algumas curvas em zigue-zague para esquerda e direita, cheguei. O sebo onde fui é um verdadeiro túnel do tempo (o que inclui um pouco de poeira e fuligem típicos dos túneis reais), um mini labirinto que é um verdadeiro paraíso para caçadores de publicações.

 

Livraria Sebo

 

Iniciei então a procura e logo de cara avistei: 'Palmirinha'. Ah não... muito famosa, tinha até programa de TV. E os olhos continuaram a sondagem. Publicações de fabricantes de ingredientes, tipo açúcar e farinha? Neca de pitibiribas. Pseudo-revistas de culinária endeusando pseudocelebridades com pseudo-sorriso na cara e pseudocozinhando algum pseudoprato? Não, muito obrigado.

Queria algo mais rústico, 'old school', escrito à mão mesmo. Ao estilo receitas de família. Eis que surge então o dono da loja na sala com outro cliente. Aproveitei e perguntei se havia algo parecido com receitas anotadas manualmente. A resposta dele foi negativa com a cabeça, e imediatamente aproveitou para reclamar de uma cliente anterior, que bagunçou a sala inteira procurando certinho as coisas que queria, só que no lugar errado. Só então percebi o caos nas prateleiras, tudo misturado ou fora de lugar, e percebi que aquilo só iria apimentar ainda mais o meu tempo cada vez mais escasso para achar o que eu queria. Agradeci e disse então que continuaria a minha busca. Nisso ele saiu da sala e me desejou um 'divirta-se!'.

 

Sebo Bagunçado


Aqui Tem Café no Bule

Segui o conselho dele e iniciei então a diversão. Separei algumas publicações rapidamente, todas com algum nível de desgaste ou ações do tempo, lógico. Algumas com o mofo já dando ares de senioridade. A hora estava passando rápido e então comecei a folhear os livros de receitas clássicas, da mesma maneira que sempre faço, deixando as páginas fluirem rapidamente usando o polegar esquerdo, do fim para o começo do livro. 'Nada de interessante nesse aqui', 'muito trivial esse outro', e assim foi durante alguns minutos.

Até que, em um determinado momento, ao folhear o segundo volume de 'Saborosos Quitutes de Mamãe Dolores', algo que estava no meio das páginas 174 e 175 cai no chão. Abaixei até o chão e peguei o papel. Era uma figura recortada em formato de bule de café antigo, na cor azul, com cabo de madeira e tampa vermelha, decorado com um belo buquê de rosas. E nele estava escrito 'Chá de Cozinha'.

 

Convite Bule

 

Achei bonitinho e até abri um sorriso... analisei rapidamente e só então percebi que era um convite. Abri. E dentro estava escrito à esquerda (sic):

6 duzia de garfo.
1 prato de salgado
1 refrigerante

Desviei o olhar para a outra metade do convite e continuei lendo (sic):

Faço questão da sua presença no meu chá de cozinha. Se não vai ficar sem graça.

Local (revelado parcialmente para garantir eventual privacidade)
Dia 13/01/80 Horário 14 horas

Não teve jeito. Nesse momento fiquei indignado ao ler 'Se não' - com grafia errada - impresso no convite. 'Faltou alguém revisar o texto na gráfica antes de imprimir', pensei eu. Fechei o convite e coloquei de volta exatamente onde estava, posicionando-o estrategicamente entre várias receitas de ovos preparados de tudo quanto é jeito. Fechei o livro e continuei a folhear outros títulos. Precisava achar algo urgente pois em breve a loja fecharia. Mais tarde eu volto a comentar sobre o convite para o tal evento.

 

Convite Chá de Cozinha


Aquilatei o Senão

Olhei para os dedos. Já estavam impregnados com poeira. Querendo ou não, acabei praticamente reorganizando quase tudo que a outra cliente tinha deixado fora do lugar. Separei alguns livros de receita, incluindo o volume onde achei o convite para o chá de cozinha. Dei mais uma olhada geral e encontrei mais três volumes da coleção e vi que estava faltando o terceiro após conferir a numeração nas capas. Não tinha a mínima idéia de quantos volumes teriam a série completa, muito menos se 'Mamãe Dolores' era de fato uma pessoa real. Nada disso importava pois eu só estava interessado mesmo no conteúdo.

 

Mamãe Dolores

 

Formei minha pequena pilha com receitas promissoras. Era hora de decidir o que levar e o que deixar, pois no dia seguinte toda a situação de disponibilidade no sebo poderia mudar com a ida de outros clientes. Fiquei pensando sobre qual critério eu deveria adotar para decidir o que levar para casa. Mesmo com a probabilidade de perder 'Mamãe Dolores' para sempre sendo muito pequena, achei melhor não correr o risco. A série incompleta de 'Saborosos Quitutes' com os volumes 1-2-4-5, comparada com as outras coisas que eu tinha achado, parecia ser a mais completa. Guardei o restante no lugar e abri novamente o mesmo volume que tinha achado o bulezinho: o número 2. Mas desta vez - com pleonasmo e tudo - comecei do começo a ver as páginas usando o outro polegar - o direito - gêmeo idêntico ao esquerdo no quesito sujeira.

Procurei pela data de publicação ou edição e não encontrei. O número de telefone fixo com sete dígitos da editora denunciava que os títulos haviam sido impressos antes dos anos 1990. Não são tão velhos assim, mas a sinopse da editora afirmava que as receitas haviam sido 'testadas e aprovadas durante mais de 30 anos nas melhores casas de São Paulo'. Uau! Rebobinei a fita e calculei que a bateria de testes teria facilmente iniciado nos anos 1960, antes mesmo do homem ter pisado na Lua. Quem sabe até bem antes a julgar pela forma como a introdução foi escrita. Em resumo, eu estava olhando para algo devidamente testado e homologado por no mínimo 60 anos!

Só não consegui deduzir onde ficariam 'as melhores casas'. Talvez fosse uma maneira de se referir a restaurantes finos ou bistrôs à época? Sei lá. Continuei lendo e fiquei tentando entender o que seria 'aquilatar a qualidade excepcional dessas receitas'. Aquilo me pegou desprevinido. Mesmo sem saber o significado de aquilatar naquela hora, tal frase de efeito praticamente me convenceu a levar os livros, pois quem usa palavras difíceis que ninguém sabe o significado deve ser muito culto e demonstra ter autoridade, não é mesmo? Sei... puro marketing isso sim.

 

Sinopse Saborosos Quitutes de Mamãe Dolores

 

'aquilatar': verbo transitivo direto. FIGURADO: apreciar, avaliar, julgar o valor de (alguém ou algo).

 

Mas a pá de cal para cimentar de vez minha decisão foi a dedicatória que Hebe Camargo fez à Isaura Bruna, identificada como responsável pelo texto daquela edição. Li rápido e, no segundo parágrafo, para minha felicidade, lá estavam, não apenas um, mas dois belíssimos 'senão' pomposos, abrilhantando o texto como um sol ao meio dia, com grafia e significado absolutamente perfeitos. Bem diferentes do 'se não' impresso no bucólico convite em formato de bule. Nem aquilatei as demais laudas do segundo exemplar do compêndio iníntegro de vade-mécuns gastronômicos. Confiei no taco e cheguei à conclusão que eu tinha encontrado o que estava procurando, mesmo a coleção estando meio capenga. Paguei pela compra no caixa e fui para casa feliz da vida. Foi divertido.

 

Dedicatória Hebe Camargo


Tatu do Assado

Cheguei em casa já levando um pito: 'limpe essas coisas antes de usar!' - ordenou com total autoridade em sua entrada triunfal na cozinha, ninguém menos que ela: a rainha de Albuquerque (sobrenome de solteiro dela...), também conhecida localmente pelo súdiito que aqui vos escreve como minha excelentíssima esposa. 'Sim, vossa majestade' - respondi. Tirei tudo da sacola e passei um pano bem mal passado em tudo. Era chegada a hora de achar as tão prometidas 'jóias da culinária'. Peguei então o livro de receitas que estava no topo da pequena pilha. Era o famigerado volume 2 (sim... aquele onde estava o convite). Continuei a ler. A página 9 era promissora, pois tratava logo de cara sobre os quitutes salgados que mais aprecio: Carnes e Assados. Que delícia! Se bem que as primeiras receitas eram de Strogonof (sic), e a meu ver não teriam muita graça para servir de inspiração. 'Strogonoff eu como em casa' pensei... e daí percebi que... eu já estava em casa. Esquece. Foi um rápido lé com cré.

Virei na página seguinte e voilá! Duas receitas com tatu. Nunca comi e não tenho a mínima vontade de experimentar. Nem pensar em publicar alguma receita com o animal silvestre. Pesquisei no Google e, como eu já desconfiava, caçar tatu é proibido por lei, apesar de ainda ser muito comum o consumo em algumas regiões do Brasil. E inúmeras páginas mostradas no buscador deixaram claro sobre os riscos de contrair várias doenças ao consumir o bichinho. A meu ver não faz sentido deglutir o pobre coitado. Portanto, vamos deixar o animalzinho em paz que daí 'tatu do certo'.

 

Proibido Comer Tatu

 

Por outro lado, a caça pelas melhores receitas deveria seguir em frente e continuei a folhear as páginas. As iguarias continuaram a aparecer com codornas e faisões. Frangos e galinhas então, nem se fale: tinha receita de tudo quanto é jeito, até mesmo uma especial entitulada 'Frango dos Namorados'. Fiquei intrigado com aquele nome. Seria para celebrar o dia dos namorados? Ou então para sacramentar o pedido de namoro na casa dos pais dela (com a presença dos pais, lógico)? Não vivi nessa época... na verdade vivi sim... mas eu só tinha acabado de quebrar a casca do ovo.

 

Receita Frango dos Namorados


Foi Pura Coincidência

Pena voando para todo lado. Era assim que meu cérebro projetava as imagens mentalmente para mim à medida que continuava paginando o livro. As receitas com galináceos não davam sinais de trégua, até que cheguei na página 38. Nela havia um outro pedaço de papel em tom bege, talvez colocado ali para marcar alguma receita preferida - 'pode até ser', pensei comigo ao mesmo tempo que via os dizeres meio por cima - e duvidei que o 'Pato no Tucupi a Elisio de Albuquerque' seria a opção para alguém preparar frequentemente. Se os autores já tiveram que explicar em nota o que significa tucupi, imagine dar referências de quem foi Elísio de Albuquerque então... nem mesmo vovó saberia dizer quem foi. Eu não te disse que essa história de receita preparada por chefs seria uma complicação só? Esta aí a prova! Errado... depois acabei descobrindo que o tal Elisio era ator... Será que a pessoa que era dona desta coleção era fã dele, e por isso marcou a página? Mistério...

 

Memórias de Bebedouro

 

Mas daí ao ver o papel com mais atenção, notei que estava escrito 'Bebedouro', e logo abaixo 'São Paulo'. Travei por um momento. Aquele pequeno bilhete me transportou imediatamente para minha infância. 

Até onde me lembro, desde que nasci até chegar no início da vida adulta, eu costumava ir com meus pais para Bebedouro/SP a fim de passar as festas de fim de ano por lá. Foram momentos maravilhosos que tive na infância, pois pude aproveitar de muita liberdade ao ar livre. Fora a comida, que era absolutamente divina no local onde eu passava as minhas férias de verão. O que um pedacinho de papel não faz hein... rejuvenesce nossas boas memórias e nos faz lembrar o quão importante é aproveitar ao máximo as oportunidades que a vida nos oferece a partir do momento que respiramos pela primeira vez. Eu aproveitei... e bastante!

'Ora, ora! Que coincidência eu ter achado isso' - disse à mim mesmo. Foi nostalgia pura.

 

Bacalhoada com Molho de Tomate?

Pois é... também achei estranho. O que uma coisa tem a ver com outra? Não combina. Segundo lé que não combina com cré. Mas no contexto desta postagem tem tudo a ver. Foi exatamente o que encontrei nas páginas 52 e 53 ao seguir em frente: Um rótulo de molho refogado de tomate da Hero. Pasme: eu nunca tinha ouvido falar dessa marca. Procurei a empresa na internet e vi que estão aí no mercado até hoje. Gostei do trecho que a empresa cita sobre sua história: 'O mundo de hoje é diferente de 10 anos atrás e nada parecido com o que era quando a Hero foi fundada.'. Concordo plenamente. O molho de tomate é prova disso pois pelo visto já não produzem mais há muito tempo. Mas acho que ainda dá para confiar na receita de Brachola disponível atrás do rótulo:

 

Receita de Brachola


Quem marcou as páginas com o rótulo provavelmente fez isso de maneira aleatória. Foi só para não perder essa receita. E anos - quem sabe décadas - depois, acertou de maneira precisa a marcação da página com um dos pratos que amo de paixão: Bacalhoada. A melhor delas que já comi até hoje foi no restaurante Quinta do Olivardo. Localizado no município de São Roque/SP, o estabelecimento faz parte do Roteiro do Vinho, e foi lá onde cada centavo gasto - e foram milhares deles - com a tradicional Bacalhoada Portuguesa valeu a pena. Se lá eles fazem a mesma receita que 'Dolores' diz que fez eu já não sei, pois pois...

 

Receita de Bacalhoada Portuguesa

 

O Chá de Cozinha

Por fim cheguei nele: o misterioso bule com a convocação de alguma amiga para um chá de cozinha, também conhecido como chá de panela. Fiquei então imaginando como teria sido esse evento. Será que ocorreu em Bebedouro/SP? Parece que não pois procurei pelo endereço e não achei. Mas achei a rua em outras cidades, inclusive em Sorocaba/SP onde comprei a coleção dos livros de receita. Vai saber...

 

Convite Misterioso para Chá de Cozinha

 

Só esse pequeno convite daria um tema para o Globo Repórter: Quem foram as convidadas? Onde viviam? Que prato de salgado a convidada acabou levando? Ela usou alguma receita de 'Mamãe Dolores'? Será que a espertinha levou Tubaína e só bebeu Coca-Cola? A noiva está casada até hoje? Teve quantos filhos? Por que pediram '6 dúzia de garfo' (sic) para esta pobre alma que recebeu um dos bules de ágata?

 

Convidada Levou Tubaína e Bebeu Coca-Cola

 

Eu acho que a convidada compareceu, pois sem ela ficaria sem graça. O truque persuasivo escrito no convite foi bem bolado e deve ter funcionado. Por outro lado, setenta e dois garfos é muita coisa. Seria praticamente um ensaio para a festa de casamento. Com essa quantidade de talheres teria sido mais fácil ligar para o noivo ir também e assim sacramentar a união numa chaleirada só. Eu acho que tentaram dizer 'meia dúzia' e acabaram escrevendo errado. Ou será que foi para o 'se não' não se sentir muito feio sozinho? Errado não está, certo também não - depende de quem lê e interpreta. Ficou uma situação muito complexa. Terceiro lé com cré. Deixa pra lá.

 

Setenta e Dois Garfos

 

E foi assim, seguindo esses marcadores de páginas improvisados e com um olhar diferente para o conteúdo que estavam apontando, que criei este texto. E no fim das contas acabei aprendendo uma grande lição. Que a vida deve ser simples e plena. Bem diferente do que supostamente esteve por trás do tal chá das comadres.

Minha busca pelos sabores nostálgicos de outrora se encerra de maneira simples, exatamente como é a receita de omelete com presunto da página 174. Para prepará-la é preciso somente de seis ovos e presunto. Faça a massa de omelete simples, junte presunto picadinho e frija-a. Simples assim.

 

Ouvi certa vez uma frase interessante: que 'Deus existe. E ele mora nas coincidências.'.

 

Um grande abraço,

Julio Malzoni | Instagram: @julio.malzoni

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